Gritar Liberta Mesmo?
De acordo com Collen Ryan-Scheutz, no chamado cinema clássico a construção ideológica “mulher” geralmente represente inexistência, limitação e falta (1). Seja através do silêncio verbal ou sociocultural sugerido por seus papéis subordinados ou espaços marginais, o status dos personagens femininos é muito freqüentemente um de não-pertencimento e não-significação no reino patriarcal da linguagem e do sentido. Em tais casos, sugere a crítica de cinema e feminista Laura Mulvey, elas se destacam na cultura patriarcal como significantes do Outro masculino, vinculadas por uma ordem simbólica onde os homens podem viver suas fantasias e obsessões através do comando linguístico e as impor à imagem silenciosa da mulher ainda ligada a seu lugar enquanto portadora, não produtora, de sentido. O desejo feminino não conta para nada, e a expressão desse desejo é quase inexistente. Enquanto que a “plenitude” ou liberdade de expressão do homem é ativada por essas mulheres, em seu vazio e subordinação. Para Kaja Silverman, o personagem feminino no cinema clássico geralmente tem a função de servir de escada para os homens. Além disso, como a mulher agrada ao olhar masculino, ela acaba perpetuando suas próprias limitações. (Acima, Maria Callas em Medéia, 1969; abaixo, Stella, em Accattone)
Ao combinar
o silêncio com o olhar, as
santas de Pasolini promovem
e sacralizam autenticidade
e diversidade (2)
Mas no cinema de Pier Paolo Pasolini o silêncio das mulheres não é sinônimo de inferioridade ou submissão. Ou melhor, certamente existem aqui personagens femininas sem voz/subjetividade, mas nem toda figura feminina marginal ou silenciosa implica inferioridade e submissão. Encontramos também mulheres que, mesmo receptivas ao olhar masculino, possuem um poderoso olhar capaz de englobar outras pessoas em sua própria trajetória. Emilia e a Virgem de Giotto (O Decameron) se caracterizam por um silêncio e intensa observação é capaz de tornar o olhar masculino sobre elas qualquer coisa, menos meramente sexual. A levitação de Emilia e a posição central da Madonna levam o espectador a buscar sentido para além da aparência imediata das coisas e comprometer-se com o convincente conceito de silêncio enquanto discurso. Para Ryan-Scheutz, devemos procurar outro significado para o silêncio no cinema de Pasolini. Um conceito de silêncio enquanto discurso. De fato, Pasolini também via o discurso como uma posição de dominação, mas utilizava o silêncio com o objetivo de neutralizar o discurso patriarcal. É justamente a ausência de palavras que coloca a expressividade de pessoas, objetos e eventos, plantados no genuíno terreno da verdade física – realidades corporais e instintivas tão centrais em seu ideal cultural sagrado (3).
O Silêncio das Inocentes: Odetta e Emilia
Em Teorema (1968), Odetta cai num estado catatônico de silêncio absoluto, os olhos abertos e punhos cerrados. Pasolini escolheu a filha daquela família burguesa para expressar a capacidade de uma jovem mulher em resistir à opressão cultural que segundo ele grassava entre as classes privilegiadas na Itália da década de 60 do século passado. Paradoxalmente, a garantia da liberdade dela consistiria nesse enclausuramento hermético em si mesma – se guardando desse mundo “profanado”. Segundo Collen Ryan-Scheutz, o singular gesto de Odetta com seu silêncio, olhos abertos e punho fechado não significa a incapacidade dela de aprender sua essência numa sociedade corrupta. Ao contrário, sua atitude prova que ela percebe e captura sua essência e que, apesar de pagar o preço de perder seu lugar na sociedade, Odetta não a deixará escapar. O preço então é se tornar um desviante, alguém para quem não há lugar na sociedade? O fato de a família acabar internando Odetta numa clínica psiquiátrica mostra apenas a incapacidade da sociedade burguesa tolerar a “diversidade encarnada” de uma forma definitiva (4). Outra forma de ausência que vale como presença é o silêncio de Emilia, a funcionária da casa burguesa.
O silêncio de Emilia
traduz um mundo interior
mais profundo do que o
dos patrões burgueses (5)
Os membros da família burguesa verbalizam seus sentimentos para o convidado misterioso (portador de um caráter sagrado), seus monólogos representam uma manifestação simbólica de suas subjetividades e constituem um despertar quase espiritual/social. A pureza de Emilia dispensa a linguagem falada no contado com o convidado. Através dele, Emilia simplesmente renovou o profundo caráter espiritual que sempre fez parte dela. Em Teorema, o teorema de Pasolini em torno de relações sexuais, com todas as implicações corporais e emocionais. Mas não é o ato sexual explícito que interessa Pasolini, mas a idéia de abranger ou abraça (e eventualmente, até certo ponto, incorporar) o Outro. O fato de que Emilia é a primeira dos cinco moradores da casa a se envolver com ele fisicamente (na verdade, quase imediatamente depois de vê-lo pela primeira vez) revela a maior consciência da figura humilde e a abertura para o sagrado. Na versão de Teorema lançada em livro, o convidado fala com ela e deixa claro que Emilia é diferente dos outros e que compartilha com ele um laço que não necessita da palavra falada (6). Mas Odetta e Emilia não são as únicas personagens silenciosas ou que se entregam ao silêncio na obra de Pier Paolo Pasolini.
O Silêncio das Santas
Quando criança, Pasolini adorava olhar para os ícones com a Virgem, era tão fervoroso que chegava a acreditar que ela sorria ou se movia. Já poeta, ele incorporou os trações de humildade e pureza da Madonna em seus escritos. Em seus primeiros filmes, Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962) ele aludia à Madonna por intermédio de algumas mulheres da favela, respectivamente Stella e Mamma Roma. Em A Ricota (La Ricotta, episódio de Rogopag, 1963), Pasolini retratou a Virgem num quadro vivo que parodiava A Descida de Cristo. Seus retratos mais diretos da Santa Mãe estão em O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964) (imagem acima) e O Decameron (1971) (imagem e vídeo abaixo). Muitas personagens femininas de Pasolini exibem a humildade e graça maternal típicas da Madonna. Elas falam e gesticulam pouco (talvez com exceção de Mamma Roma). À primeira vista o silêncio das santas (especialmente o de Mamma Roma na cena final), e seu comportamento reservado, concedem a elas uma qualidade iconográfica especial. Um olhar mais atento revela que, em cada filme, essas mulheres (aparentemente submissas e insignificantes) utilizam um aguçado senso de visão e uma linguagem não-verbal que abraça a pureza e a diversidade tão completamente que as torna sacrossantas (invioláveis). (no vídeo abaixo, trecho de O Decameron em que Giotto [Pasolini] sonha com a Virgem. Terminado o trabalho no afresco, ele desabafa olhando para a pintura:"Por que criar uma obra de arte se sonhar com ela é tão mais doce?")
A Virgem Maria
de O Decameron se manifesta com uma
“voz silenciosa”(7)
Enquanto homossexual e marxista não-ortodoxo, Pasolini sempre foi uma figura “periférica”. E, como tal, um dos muitos que o poder pretendia subjugar e silenciar. Era a partir deste ponto marginal que quase sempre ele falava, e foi tendo isso em vista que Pasolini equipou suas santas com uma prática discursiva alternativa. Enquanto as feministas bradavam que as mulheres deviam superar as armadilhas do silêncio, Pasolini valorizava o silêncio feminino e o utilizava de forma a enfraquecer as armadilhas do discurso patriarcal. Era precisamente esse silêncio que dava a suas santas uma voz bem mais penetrante do que as palavras. A “falta” das santas era uma condição positiva e um poderoso veículo de subjetividade. Ryan-Scheutz conclui dizendo que a expressividade dos personagens de Pasolini advém justamente da ausência de palavras. Na medida em que a identidade de um personagem pode depender de seus atos de fala ou da ausência deles, a voz e o silêncio desempenham um forte papel na bem sucedida expressão de si mesmo – por mais difícil que seja interpretar o silêncio de alguém.
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Suicídio é Pecado Mesmo?
Notas:
1. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Canada: University of Toronto Press, 2007. P. 137.
2. Idem, p. 138.
3. Ibidem, p. 139.
4. Ibidem, pp. 115.
5. Ibidem, p. 154.
6. Ibidem, pp. 152-3.
7. Ibidem, p. 161.