“O tenho em alta estima e
o prefiro a todos os rapazes da
minha idade, [que] são estúpidos,
superficiais e convencidos, e se
sentem como super-homens (...).
Hoje, o mundo está cheio de
casamentos de amor falidos.
Não faltam exemplos”
minha idade, [que] são estúpidos,
superficiais e convencidos, e se
sentem como super-homens (...).
Hoje, o mundo está cheio de
casamentos de amor falidos.
Não faltam exemplos”
Lili, a filha de Bruno com 18 anos,
defendendo seu namorado de 60
defendendo seu namorado de 60
Tentando Ultrapassar os Obstáculos
Mil desculpas aos que acharam que este seria um texto de auto-ajuda. De fato, com um título destes, dificilmente se poderia imaginar outra coisa. Na verdade, este é apenas o título de lançamento no Brasil do filme dirigido por Dino Risi. Originalmente intitulado Il Sorpasso (1962), cuja tradução correta é A Ultrapassagem, apresenta Vittorio Gassman no papel principal e Jean-Louis Trintignant desempenhando a função daquele que supostamente não sabe viver. Na França, o filme recebeu o título talvez mais apropriado de O Fanfarrão.
O quarentão Bruno (imagem acima, plantando bananeira) se recusa (ou não consegue) parar de agir com a impulsividade, arrogância, irresponsabilidade de um adolescente. Hedonista, sempre sem dinheiro, vive de pedir empréstimos para colocar gasolina em seu carro esporte conversível. Compulsivo, está sempre procurando por cigarros, mesmo que seja do cinzeiro do carro dos outros. Não leva nada a sério, invade a casa ou a festa de desconhecidos com naturalidade. Infringe as leis de trânsito. Falastrão, no fundo não conversa com ninguém, apenas fala o tempo todo. Dificilmente consegue-se fazê-lo ouvir os argumentos dos outros, pois ele está sempre tagarelando e dirigindo a conversa na direção de sua preferência.
Tem uma filha com 18 anos que raramente visita. Sua esposa, que ele não visita há três anos, deu-lhe o dinheiro para colocar o divórcio em curso, mas ele preferiu não se divorciar (e ficou com o dinheiro). Ela diz que não quer mais relacionamento com ninguém e prefere ficar só. Quando Bruno apareceu uma noite na casa dela com Roberto, o jovem tímido que a essa altura já estava de porre, descobriu que sua filha chegaria tarde da noite com o namorado. Irritou-se e condenou a irresponsabilidade da esposa na condução da educação da filha. Quando a moça chega, ele procura intimidar o namorado. Entretanto, trata-se de um homem de 60 anos, empresário, rico, que afirma detestar aqueles que vivem em Roma, que considera uma cidade de pessoas que não querem trabalhar. Bruno não gosta da observação, já que ele é um romano. Em suma, o namorado da filha de Bruno é mais velho e mais responsável. Tempos depois, Bruno pede dinheiro emprestado a seu futuro sogro. Empréstimo que Bruno diz que só merecerá depois que ganhar dele no ping pong.
Após a saída do namorado de Lili (a filha), Bruno volta à carga contra ele. Mas Lili elogia o homem que escolheu, desdenhando os homens de sua idade – curiosamente, todas as características que ela descreve deles lembram Bruno, seu pai quarentão. Além disso, critica os casamentos falidos que se multiplicam – comentário que também remete a seu pai (veja epígrafe no princípio do artigo). Apesar de tudo, sua filha pede que ele não mude. Confessa que escolheu esse parceiro porque busca segurança, pois no fundo não tem certeza de nada na vida. A atitude do pai diante da vida (alguém que supostamente sabe o que quer, não se importando com o resto) é o que ela não consegue assumir. Por esta razão, ela não quer que ele mude.
Roberto (Trintignant) é o carona de Bruno. Pouca idade, tímido, hesitante e estudioso, é exatamente o oposto de Bruno. Ele não tem personalidade para impor seus pontos de vista frente ao furação Bruno. Aos poucos Roberto vai se soltando. No final do filme, os dois amigos estão em alta velocidade tentando ultrapassar um carro. Numa das tentativas, Bruno se depara com um caminhão vindo em sua direção. Tenta desviar, sai da estrada, é jogado para fora do carro. Roberto rola montanha abaixo dentro do carro e morre. Esta foi a última ultrapassagem (daí o nome do filme), uma que Bruno não conseguiu fazer e que tirou a vida daquele que supostamente não sabe viver. Era uma estrada litorânea, lado a lado com a vastidão do mar sem trilhas ou estradas: o lugar onde não há destino. Bruno desejava essa vastidão, mas o ir e vir (indo ou vindo, como ele dizia, não faz diferença) com seu carro só levou a mais uma perda. Se Bruno fosse um nômade de fato, não precisaria de platéia (Roberto e todos com quem conversa, mas não deixa falar) para quem ficar compulsivamente se afirmando como alguém que faz o que quer.
Um Destino Humano
Dino Risi se inspirou em duas viagens que fez com amigos. Mas afirmou também que Bruno é o típico italiano que surgiu no pós-guerra, além de ser um retrato do italiano com suas maneiras espalhafatosas. O filme se encaixa no gênero “filme de estrada” (road movie), tendo até mesmo inspirado o famoso Sem Destino (Easy Rider) (1). A errância de Bruno pelas estradas, necessariamente em alta velocidade e com o som onipresente de sua buzina, a forma como faz gozações e provocações aos outros motoristas, tudo isso mostra um desejo incontrolável de quebrar regras. Em certo momento, Bruno chega a dizer que a Roberto que não importa a direção, indo ou voltando é a mesma coisa. É como se Bruno precisasse sempre de platéia, de aprovação. Entretanto, o verdadeiro nômade não precisa de aprovação. Bruno vivia fazendo ultrapassagens perigosas, mas nunca era suficiente, precisava da platéia dentro do carro. Mas é a platéia que morre quando ele não consegue fazer a ultrapassagem. A vastidão do mar (sem estradas) que margeava a rodovia no final do filme é como a metáfora do espaço que Bruno consegue margear, mas nunca entrar.
Um Destino Humano
O tempo todo
Bruno se vê como
um cigano que não
quer criar raízes no
chão que pisa
um cigano que não
quer criar raízes no
chão que pisa
Dino Risi se inspirou em duas viagens que fez com amigos. Mas afirmou também que Bruno é o típico italiano que surgiu no pós-guerra, além de ser um retrato do italiano com suas maneiras espalhafatosas. O filme se encaixa no gênero “filme de estrada” (road movie), tendo até mesmo inspirado o famoso Sem Destino (Easy Rider) (1). A errância de Bruno pelas estradas, necessariamente em alta velocidade e com o som onipresente de sua buzina, a forma como faz gozações e provocações aos outros motoristas, tudo isso mostra um desejo incontrolável de quebrar regras. Em certo momento, Bruno chega a dizer que a Roberto que não importa a direção, indo ou voltando é a mesma coisa. É como se Bruno precisasse sempre de platéia, de aprovação. Entretanto, o verdadeiro nômade não precisa de aprovação. Bruno vivia fazendo ultrapassagens perigosas, mas nunca era suficiente, precisava da platéia dentro do carro. Mas é a platéia que morre quando ele não consegue fazer a ultrapassagem. A vastidão do mar (sem estradas) que margeava a rodovia no final do filme é como a metáfora do espaço que Bruno consegue margear, mas nunca entrar.
Não é por acaso que em certo momento ele diz que dormiu quando foi ver O Eclipse (1962), filme de Michelangelo Antonioni. Com seu estilo abstrato e planos longos e lentos, o estilo de Antonioni não poderia agradar a Bruno. Entretanto, o eclipse de que fala o filme bem poderia ser o de gente como Bruno. Um eclipse da humanidade e dos sentimentos. Ou será que uma das características das pessoas que sabem viver é essa tendência a entediar-se quando a vida ou os outros se apresentam diferentes daquilo que se espera?
Durante um eclipse total todos os caminhos desaparecem e o mundo se parece com o fundo de um mar – onde não existe luz. As trilhas no interior das pessoas são a única saída. Caso essas trilhas interiores não existam, somos pressionados de volta ao mundo onde as coisas, pessoas e caminhos nos são impostos. É contra esse mundo que Bruno se rebela. Mas ele só consegue vislumbrar o outro mundo, trilhar suas bordas, porque ele não vive dentro de si. Sendo assim, não percebe que o labirinto interior é o verdadeiro desafio do nômade que trilha a si mesmo.
Ao explicar as razões porque se filme Amarcord (1973) fez tanto sucesso na Itália, Federico Fellini sugeriu que os italianos se viram retratados com clareza por aqueles personagens cujo comportamento era basicamente infantil. Talvez isso também explique o sucesso de A Ultrapassagem (ou Aquele Que Sabe Viver). Fellini afirmou que fenômenos como a ditadura facista de Mussolini ajudariam muito na infantilização dos italianos. Entretanto, completou o cineasta, não foi o Facismo que gerou essa situação. Muito pelo contrário, foi o caráter infantilizado do italiano que engendrou uma ditadura como aquela.
Amarcord é ambientado na época imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, onde o Facismo já se encontra instalado. Aquele Que Sabe Viver está ambientado na década de 60 do pós-guerra. Ao que parece, o fim de Mussolini não mudou muito a Itália. Dino Risi, o diretor, vai dizer que o filme retrata a época já do final do Milagre Econômico. Na década de 70 que se seguiria, continua Risi, assistiríamos ao avanço da corrupção esgarçando o tecido social italiano. Esse estado de coisas também explicaria o sucesso da trilogia Meus Caros Amigos (Amici Miei, 1975, 1982, 1985), todos ambientados a partir da década de 70 – os dois primeiros com direção de Mario Monicelli, que os assumiu com a morte de Pietro Germi; o terceiro por Nanny Loy. Trata-se de um grupo de cinquentões que se recusam a assumir seus papéis como adultos.
Nota:
Leia também:
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
1. Segundo afirmou Dino Risi na entrevista (sem data) que consta dos extras do dvd de Aquele Que Sabe Viver, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo em 2006.
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1. Segundo afirmou Dino Risi na entrevista (sem data) que consta dos extras do dvd de Aquele Que Sabe Viver, lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo em 2006.