Pasolini
dizia que o capital
é falsamente tolerante.
Preferia ser condenado injustamente a ser
tolerado (1)
Liberdade de Expressão e Sexualidade
Pier Paolo Pasolini contou que algumas vezes foi parado na rua por gente que desejava saber quando seria lançado O Decameron nº2, ou O Decameron Proibido. O mercado cinematográfico confundiu muitas pessoas, fazendo com que se acreditasse que Pasolini teria dirigido filmes que na verdade não passavam de plágio de seus próprios filmes. O Decameron (Il Decameron, 1971), a primeira parte da Trilogia da Vida, foi seguido de várias imitações que atingiram grande sucesso frente ao público. Conhecidos também como Decamerotic, tais imitações foram classificadas como falsificações por Pasolini. A mesma coisa aconteceu, ressentiu-se Pasolini, com Os Contos de Canterbury (I Racconti Di Canterbury, 1972) (fonte das imagens deste artigo) e As Mil e Uma Noites (Il Fiore Delle Mille e Una Notte, 1974) a segunda e terceira partes da trilogia. Este último, por exemplo, foi precedido por um Finalmente... Mille e Una Notte (direção Antonio Margheriti, 1972) – como às vezes acontece na concorrência entre canais de televisão, quando lançam um programa porque sabem que o concorrente lançará. Filme direcionado apenas ao erotismo – na parte final existe até um personagem que imita o Homem sem Nome de Por Um Punhado de Dólares (Per Un Pugno di Dollari, 1964), do faroeste espaguete de Sergio Leone.
O Decameron de Pasolini
foi sua maior bilheteria e
teve oitenta denúncias por pornografia, sem falar nas cidades aonde a cópia foi seqüestrada pela justiça(2)
Mas tudo isso, explicou Pasolini em 1973 num anexo ao roteiro de Os Contos de Canterbury, é apenas o lado puramente comercial ou concorrencial (“desleal, sem vergonha, brutal”) da coisa (3). Uma concorrência desleal que, esclarece o italiano Pasolini, não é nada fora do comum, mas típica da vida italiana. Chamou atenção também para o fato de que o silêncio dos moralistas italianos em relação a essa falsificação de sua obra foi o exato oposto dos veementes protestos deles em relação à liberdade da representação sexual no Decameron e Os Contos de Canterbury. Ou melhor, protestou-se contra as obras de Pasolini, mas não contra os plágios, as falsificações puramente apelativas e sexuais de suas obras. Na opinião de Pasolini o que se pode inferir dessa atitude, seja dos moralistas e funcionários da justiça que não se importam com o caso, ou dos críticos cinematográficos (que Pasolini identifica com as “elites privilegiadas”), é que nesta sociedade da falsa liberdade sexual apenas devemos nos indignar com a liberdade sexual quando ela é liberdade de expressão (4).
Na Itália, Os Contos de
Canterbury foi acusado de obscenidade e as autoridades tentariam por três vezes seqüestrar as cópias (5)
Pasolini chamou atenção de que a nudez e o sexo nos filmes da trilogia tenham escandalizado alguns, ao passo que o plágio direcionado à pornografia (e a pornografia em si mesma) do qual seus filmes foram vítimas não parece incomodar. De qualquer forma, comentou Pasolini, apenas as pessoas com anormalidade sexual se escandalizam com o sexo. Mas é preciso deixar claro que quando Pasolini se refere a sexo ele não está falando de pornografia. Ele mesmo afirma que o sexo é um elemento essencial de seu cinema. É urgente a necessidade, afirmou Pasolini em 1973, mostrar aquilo que por hipocrisia, medo e angústia, não mais se representava ainda que seja parte essencial da existência: o sexo justamente em seu momento existencial, corpóreo, carnal. Não deve haver limite à liberdade de expressão nesse ponto. Em sua nudez extrema e indefesa, que é parte da vida real, tem o direito de ser expresso e representado. O poeta e cineasta quer dizer que a representação do ato sexual em seus filmes é uma exigência da expressão total do real (6).
Portanto, a primeira conclusão de Pasolini foi que ninguém pode ser impedido de representar em sua totalidade a realidade que se experimentou. Isto deveria tornar-se um princípio, segue-se que devemos abandonar a idéia da pornografia como um crime: estão é um problema de cultura, não de lei. Assistir pornografia, definiu Pasolini, é um problema de falta de cultura dos espectadores. Mas eles não podem ser impedidos pela lei de assistirem, caso esse direito lese o princípio de liberdade (aqui o poeta-cineasta esclarece, ele se refere a pessoas adultas e, portanto, de direito e responsáveis). Enquanto Pasolini faz esses comentários, Os Contos de Canterbury está para ser julgado pela terceira vez no tribunal italiano – mais um dos tantos processos da vida do poeta-cineasta. Ele nos esclarece que, pelo menos até 1973, o artigo 529 do código penal italiano exclui a possibilidade de a “obra de arte” ser julgada segundo os conceitos de pornografia e obcenidade. Pasolini explica que fez algumas adaptações no orginal em função do comportamento do narrador (que mais “fofoca” do que narra) seria impossível de transferir para o filme – a reinterpretação fruto de sua “leitura crítica” foi questionada.
“(...) Na verdade,
o corpo nu é o símbolo da
realidade: e, de modo ainda mais direto, o sexo”
Pier Paolo
Pasolini (7)
Além disso, defende Pasolini, o filme não é uma ilustração do livro de Geoffrey Chaucer (1342-1400), mas um trabalho de autor a partir dele (8). Sendo assim, a fofoca foi substituída por elementos “mais sileciosos”. Pasolini admite que pode ter sido um erro, pois um conto imerso no falatório pode ser mais claro do que se for representado por uma imagem frontal, com uma pureza de intensidade e controno que nõ faz parte de sua natureza. A poesia então, conclui o poeta-cineasta, pode ter chegado fragmentada. Talvez, então, o filme de Pasolini não se enquandre mesmo enquanto “obra de arte”! – um conceito que Pasolini chamou de espiritualista-burguês da arte, que supõe uma sociedade onde existem círculos capazes de ter sentimentos e idéias que as massas seriam incapazes de perceber. A segunda conclusão de Pasolini é que a liberdade de expressão se justifica por si mesma, e não pela poesia – como se só ela fosse uma “obra de arte”. E Pasolini conclui afirmando ser difícil até para o mais cego dos moralistas imaginar um autor que trabalhe obcecado pelo dilema: “Ou faz poesia ou vai para a prisão” (9).
Leia também:
Pier Paolo Pasolini e a Trilogia da Vida
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I), (II), (III), (IV), (V)
Quando Fellini Sonhou com Pasolini
Pasolini o Corvo Falante
As Mulheres de Pier Paolo Pasolini (I), (II), (III), (IV), (V), (VI), (VII), (VIII), (IX), (X), (XI), (XII)
A Nudez no Cinema (I), (II), (III), (IV), (V), (VI)
A Poesia e o Cinema em Tarkovski
Arte do Corpo: Veruschka e a Pele Nua
Yasuzo Masumura e os Olhos nos Dedos
Os Auto-Retratos de Francis Bacon
Arte do Corpo: HR Giger e Seus Pesadelos
Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Isto é Hollywood!
1. NAZÁRIO, Luiz. Todos os Corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007. P. 98.
2. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di um Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. P. 247.
3. PASOLINI, Pier Paolo. Libertà e Sesso Secondo Pasolini (1973). in SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) Pier Paolo Pasolini per il Cinema. Milano: Mondadori, 2 vols. 2001. Vol. 1, p. 1567.
4. Idem, p. 1569.
5. BERTELLI, Pino. Op. Cit., p. 275.
6. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) . Op. Cit., pp. 1570-1.
7. BOARINI, Vittorio (org.). Erotismo, eversione, merce. Bolgona: Capelli, 1974. Pp. 110-1 in BERTELLI, Pino. Op. Cit., p. 269.
8. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds) . Op. Cit., p. 1568.
9. Idem, p. 1571-2.