“Vou construir uma vida normal. Vou me casar com uma pequeno-
burguesa... Medíocre. Cheia de idéias mesquinhas, de pequenas
ambições mesquinhas. Sim, toda cama e cozinha. A normalidade.
Pretendo construir a minha normalidade, mas não será fácil”
Marcello ao padre no confessionário
Para Ser Igual a Todo Mundo...
Os flashbacks da infância de Marcello são apresentados por Bertolucci na cena da confissão, ela própria um flashback. Antes de se casar com Giulia, ele deve confessar-se com o padre. Marcello vê esta tarefa como a missão de um homem normal. Então ele se lembra de uma vez que seus colegas de escola tentaram tirar sua bermuda. Lino chega com o carro preto luxuoso da família para levá-lo para casa. Ela está situada uma colina de Roma, de onde se pode ver a cidade por cima. Continuando o flashback, vemos Lino e o pequeno Marcello brincando, quando acabam no quarto do motorista. Lino tira o quepe e deixa o garoto ver seu cabelo cumprido que sempre fora escondido.



Essa resposta faz lembrar da atitude dos homens de Roma retratados em Os Italianos se Viram, dirigido por Alberto Lattuada, e parte da coletânea O Amor na Cidade (Gli Italiani si Voltano em Amore in Città, 1953). É o que vemos o tempo todo nessa pequena pérola: as mulheres passam e os homens avaliam o material compulsivamente. Mas de repente, um desses homens começa a encarar uma mulher no ônibus de forma indiscreta demais. Ela salta e ele vai atrás, a mulher se mostra bastante incomodada e visivelmente impotente, pois já não sabe o que fazer. Ela entra em um prédio e só então o homem desiste. Um filme que começa com uma atmosfera leve, ainda que já machista, acaba tomando a direção de um filme digno de Hitchcock (inclusive a trilha musical até acaba).
O comentário de Ítalo talvez tenha servido como um alerta para Marcello, que tem uma tendência a vigiar os outros (daí sua carreira na polícia secreta de Mussolini) e depois virar-se contra eles (como faz com o casal Quadri e com o próprio Ítalo). O que não dá para concluir se chega a ser um ponto positivo para Marcello é o fato de que ele não conseguiu matar os Quadri, limitando-se a assistir execução. Irritado, Manganiello resmunga, "faça-me trabalhar na merda, mas não com um covarde. Se depender de mim, covardes, homossexuais e judeus, são todos a mesma coisa. Se dependesse de mim eu colocaria todos contra o muro. Melhor ainda, eu os eliminaria assim que nascessem".
O Novo Homem Italiano


As emoções de Marcello vêm à superfície de forma sádica: atormenta seu pai mentalmente doente, dá uma surra no amante de sua mãe através dos punhos de Manganiello. Além disso, quando ainda está no trem para Paris com Giulia e ela confessa que perdeu a virgindade antes do casamento com ele, Marcello vai imitando os toques do tio que a seduziu enquanto ela descreve o que ele fazia. Até mesmo com Anna, que se tornou sua amante, ele é violento. Mas o filme não chega a costurar esses elementos em um todo coerente, Bertolucci deixa ao espectador a tarefa de encontrar o motivo dos impulsos devastadores de Marcello.
A Parceira do Corpo
Marcello está consciente de um sentimento doloroso profundo.
Ele é como um fio de alta tensão no qual passa uma carga
de eletricidade que independe de sua vontade e que
possui sempre placa avisando: “Cuidado: Perigo”
Ele é como um fio de alta tensão no qual passa uma carga
de eletricidade que independe de sua vontade e que
possui sempre placa avisando: “Cuidado: Perigo”



Marcello não demonstra pena do pai. No que parece ser um anfiteatro, ele e sua mãe tentam falar com o velho, que não pára de escrever e repetir aquela frase. Marcello faz perguntas sobre o passado político de seu pai: você torturou? Você matou? Aparentemente cheio de remorso, o velho se afasta e se oferece ao enfermeiro para que lhe vista com a camisa de força (Curiosamente, a camisa de força é preta, a mesma cor do Partido Fascista, cujos correligionários eram conhecidos como "camisas negras") (imagem acima, à direita) (3). Quando foi com a mãe visitar seu pai para comunicar sobre seu casamento, Marcello pega o papel onde o velho escrevia um texto que termina com as palavras “matança e melancolia”. Então mostra para sua mãe e diz sarcasticamente: “seja, o anuncio do casamento”. Em sua existência, Marcello gira em torno de um desejo de agradar sucessivos pais substitutos, sendo rejeitado por seu pai verdadeiro. Juntamente com isso, a questão do sentimento de fraqueza causado pelo encontro homossexual casual com Lino no passado distante que motiva sua busca pela “normalidade” no presente (4).
Um Mundo Surreal
“Se o Estado não se modelar à imagem do indivíduo,
como o indivíduo poderá se modelar à imagem
do Estado?Etc. Etc. Matança e melancolia”
palavras do pai de Marcello no manicômio
como o indivíduo poderá se modelar à imagem
do Estado?Etc. Etc. Matança e melancolia”
palavras do pai de Marcello no manicômio
No filme de Bertolucci, o único momento em que Marcello demonstra algum afeto é com uma prostituta na parada que o trem faz na cidade de Ventimiglia, a caminho da lua-de-mel em Paris. Ele se dirige a um bordel que esconde um quartel general da polícia secreta de Mussolini. Lá Manganiello parece gostar de fazer uma prostituta dizer que “é louca”. Quando ela se levanta do sofá e se aproxima dele, Marcello lhe abraça impulsivamente. Tanto nesta como na cena da visita ao pai no manicômio, tudo é branco. Uma imagem quase surrealista.
Lá no começo de tudo, quando Marcello visitou um Ministro fascista propondo um plano de espionar o professor Quadri, o político estava com uma amante no gabinete. Esta amante e a prostituta no bordel tem o mesmo rosto. Trata-se da mesma atriz que também faz o papel de Anna. Quando Marcello se defronta com aquele rosto pela terceira vez, ao ser apresentado a Anna Quadri, ele tem a sensação de um deja vu que o desconcerta durante todo o resto do filme (5). Bertolucci cria desta forma uma ligação entre os artistas reais e seus personagens de ficção. (imagem ao lado, sem hesitar, Marcello abraça a prostituta)
No bordel, Marcello encontra pinturas na parede (que Tonetti um tanto apressadamente considerou surrealistas), até que uma velhinha diz que ali não é um museu e que escolha logo uma prostituta. Após abraçar a prostituta com cara de Anna, Marcello encontra Raoul. Ele é o agente da polícia secreta que explicará à Marcello que sua missão não é mais espionar o professor Quadri, mas matá-lo. A mesa de Raoul parece uma colagem surrealista, com muitas nozes (talvez, uma dieta do sexo) espalhadas entre objetos típicos de escritório (imagem abaixo). Fornece um revolver a Marcello, que aponta para ele depois para sua própria cabeça.
O manicômio onde o pai de Marcello está internado, assim como o bordel de Ventimiglia, é apresentado numa luz branca surrealista. O quepe da prostituta, a mesa e a roupa de Raoul, a pose de Marcello com a arma, as pinturas... Tudo coloca o espectador em um nível surrealista de sonho. Este clima é alcançado por Bertolucci com momentos visuais obscuros e por usar a mesma atriz nos papeis de Anna, da amante do político fascista e da prostituta. A própria estrutura do filme, em flashback, mostra o que se tornou uma lembrança (memória) na mente de uma pessoa (Marcello) se recordando de algo: real, irreal, surreal... (6)
Do Mito da Caverna à Queda do Fascismo
Marcello: “Imagine [...] uma caverna. Dentro, homens que lá viveram desde a infância, todos acorrentados e forçados a olhar para o fundo [dela]. Atrás deles, bem longe, a luz das chamas de uma fogueira. Entre o fogo e os prisioneiros, imagine uma parede baixa parecida com [um] palco onde um titereiro mostra suas marionetes. Agora tente imaginar alguns outros homens passando por trás daquela pequena parede carregando estátuas feitas de madeira e pedra...[...]



Do Mito da Caverna à Queda do Fascismo

Professor: Não poderia ter me trazido melhor presente de Roma do que essas memórias, Clerici. Os prisioneiros acorrentados de Platão.
Marcello: E como se assemelham a nós.
Professor: O que eles vêem?
Marcello: O que vêem?
Professor: Você, que veio da Itália deveria saber por experiência.
Marcello: Vêem apenas as sombras que o fogo produz no fundo da caverna diante deles.
Professor: Sombras. O reflexo das coisas. Como [acontece] com vocês na Itália agora.
Marcello: Se aqueles prisioneiros estivessem livres e pudessem falar, eles não chamariam as sombras que vêem de realidade quando eram visões.
Professor: Sim, [...] as sombras da realidade. O Mito da Caverna”. (7)
Marcello: E como se assemelham a nós.
Professor: O que eles vêem?
Marcello: O que vêem?
Professor: Você, que veio da Itália deveria saber por experiência.
Marcello: Vêem apenas as sombras que o fogo produz no fundo da caverna diante deles.
Professor: Sombras. O reflexo das coisas. Como [acontece] com vocês na Itália agora.
Marcello: Se aqueles prisioneiros estivessem livres e pudessem falar, eles não chamariam as sombras que vêem de realidade quando eram visões.
Professor: Sim, [...] as sombras da realidade. O Mito da Caverna”. (7)
Segundo Tonetti, a citação do Mito da Caverna não corresponderia à complexidade dos personagens do livro de Moravia. Platão aponta para uma neutralização das ambigüidades, mas os personagens de Moravia são mais ambíguos do que os do filme de Bertolucci. Alem disso, insiste Tonetti, todo o livro é mergulhado numa atmosfera de androginia (como com Giulia, que tivera relações sexuais com uma namorada durante a adolescência). O texto de Platão que melhor se encaixa no texto de Moravia é o Convivium.
“(...) Portanto, não é o espírito de A República, [o livro] que contém o Mito da Caverna, fluindo nas páginas de Moravia, mas a poesia de Convivium, onde Platão fala sobre amor, sexo e androginia. No começo dos tempos, o filósofo nos conta, os seres humanos eram um só. Eles eram chamados Amphoteroi. Circular na forma, eles procriavam acasalando com a terra. Cortando pela metade por Zeus, as partes separadas para sempre aspiram reconstruir a unidade original com a ajuda de Eros, o deus amigável e travesso que trata da antiga ferida e faz um de dois. Em certo nível, no Conformista de Moravia a antiga unidade parece ainda existir em cada indivíduo; feminilidade e masculinidade coexistem. Isso é o que Marcello não pode aceitar desde a hora que ele tentou camuflar a delicadeza de suas feições, procurando ser como todo mundo, não sabendo que ‘todo mundo’ é uma categoria abstrata, uma massa indefinida de pessoas com características genéricas, que se tornam secundárias em um indivíduo. Todas essas sutilezas estão ausentes do filme de Bertolucci” (8)




Nem chegamos a perceber que estamos no Coliseu, pois a câmera só olha para os lugares escondidos com fogueiras e grades que sugerem uma prisão. No filme de Bertolucci, a auto-descoberta de Marcello é mínima, ele ainda está rodeado por sombras refletidas na parede no fundo da caverna que se transformou sua vida (10). (nas duas imagens acima, um dos pontos altos do filme, acompanhamos a súplica de Anna por sua vida e o olhar gélido de Marcello. Abaixo, à direita, Giulia, "depois que o mundo caiu". Ou melhor, depois que Mussolini foi forçado a abdicar, depois que a Itália foi invadida pelos exércitos aliados, depois que ela foi forçada a dividir com uma família pobre o pequeno apartamento de classe média onde morava com a mãe, e depois que ela finalmente compreendeu o que Marcello havia feito em Paris durante a lua-de-mel. Na imagem seguinte, última cena do filme, vemos Marcello olhando para o garoto de programa, ou para nós...)


“(...) [A] filosofia platônica não é apenas parte do conteúdo de O Conformista (a aula de Quadri e a cena final no Coliseu), mas é [também] parte da técnica cinemática. A forma do filme (seus momentos de incoerência e seus ousados flashbacks colocados juntos no processo de edição) é um marco, precisamente porque não é [apenas] um veículo para a exibição vazia de tecnologia. [A forma de O Conformista] se evidencia por idéias inovadoras relacionadas de forma sedutora a teorias antigas que sempre provocam o pensamento”. (12)
Leia Também:
Bertolucci e a Psicanálise: O Conformista (I)
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Ettore Scola e o Filme Dentro do Filme
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
Notas:
1. TONETTI, Claretta Micheletti. Bernardo Bertolucci. The Cinema of Ambiguity. New York: Twayne Publishers, 1995.Pp. 103-4.
2. RESTIVO, Angelo. The Cinema of Economic Miracles. Visuality and Modernization in the Italian Art Film. Durham & London: Duke University Press, 2002. P. 183n20.
3. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 109.
4. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008 [1983]. P. 303.
5. Idem, p. 303.
6. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 111.
7. Aqui utilizo o texto das legendas do dvd do filme, lançado no Brasil pela Lume Filmes, 2008. Salvo nos momentos que julguei necessária uma correção da tradução.
8. TONETTI, Claretta Micheletti. Op. Cit., p. 118.
9. Idem, p. 114.
10. Ibidem, p. 117.
11. Ibidem, p. 119.
12. Ibidem, p. 120.