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Roberto Acioli de Oliveira

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31 de mai. de 2018

Alida Valli: a Exótica


Ela dividia com
 Isa Miranda o posto de
 verdadeiras rainhas do
cinema fascista (1)

Até 1938, eram os filmes provenientes dos Estados Unidos que dominavam as telas de cinema na Itália. A partir daí os estúdios de Hollywood abandonaram o país, já que o governo de Mussolini estabeleceu um monopólio na importação de filmes, impondo seu preço e aproveitando a situação para afastar o produto norte-americano do mercado italiano. Com a saída do Tio Sam, a produção italiana se expandiu. Entre 1939 e 1943, emergiu um número substancial de atrizes, muito apreciadas tanto pelo público quanto pela crítica. Mais conhecida pelo pseudônimo “Alida Valli”, Alida Maria Altenburger (ou Alida Maria Laura von Altenburger, ou Lidia von Altenburger) estava entre elas. Ela nasceu em Pola (e onde iniciou seus estudos de cinema), no sul da Istria, península que na época pertencia à Itália, mas que atualmente pertence à Croácia. Seja como for, Alida Valli sempre se considerou italiana. Na Itália, ela alcançou sucesso em comédias leves, como Vida Apertada (Mille Lire Al Mese, direção Max Neufeld, 1939) e Aulas de Amor (Ore 9 Lezione di Chimica, direção Mario Mattoli, 1941), em filmes de gênero, como Piccolo Mondo Antico (direção Mario Soldati, 1941), e dramas, como Atrás da Cortina de Ferro (Oprimidos) (Noi Vivi, Addio Kira!, direção Goffredo Alessandrini, 1942). A aparência de Valli se encaixava perfeitamente no ideal de beleza definido pelo cinema italiano da época. Rosto oval e olhos verdes, como as sobrancelhas de uma gata pega de surpresa. Para os padrões italianos, ela era exótica. Como foi iluminada com realismo em seus filmes, seu rosto não carregava a aura de idealização e perfeição presente nas outras atrizes, transparecendo uma vida interior mais complexa. Na opinião de Stephen Gundle, Valli foi o ponto mais alto de originalidade que o cinema italiano da era fascista alcançou (2).


Em O Grito (1957), de Antonioni, Alida Valli é Irma, que rompe com
seu  amante  justamente  quando uma união deles torna-se possível

É verdade que durante as primeiras décadas do pós-guerra certa distância do estilo das atrizes de Hollywood tinha mais relação com o modelo de mulher preconizado pelo Fascismo, embora ainda se possa admitir certa ressonância com os gostos do público masculino italiano (machista). Desta forma, ainda que pudessem aparecer nas telas atuando em papeis de mulheres fortes, fora das telas o estilo de vida era, ou deveria ser, mais próximo do modelo tradicional (patriarcal). A “normalidade” na esfera privada das atrizes era garantida pela publicidade em torno de elementos como a maternidade e competência nos afazeres de uma dona de casa comum. A cobertura jornalística da gravidez de Gina Lollobrigida e Alida Valli, por exemplo, constituía uma maneira de apresentar estas atrizes como mamães de classe média, iguais à maioria das mulheres comuns e com grande contraste em relação ao glamour artificial das atrizes de Hollywood. De fato, ali a maternidade das estrelas não era muito evidenciada, pois se temia que a mística do desejo da plateia masculina fosse afetada. Tanto o Estado quando a Igreja Católica perseguiam com a tesoura da censura qualquer manifestação de desejo sexual e independência de ideias das mulheres manifestadas por personagens femininas. Elas até poderiam trabalhar fora de casa, mas nunca deveriam deixar de se casar e ter filhos – muitos personagens de atrizes como Marilyn Monroe, Lollobrigida, Silvana Mangano e Sophia Loren, eram muito mais interessadas no mercado de consumo do que na maternidade (3). (imagem abaixo, Édipo Rei)


 Alida Valli sobrevive à queda do regime fascista com a fama intacta, 
dos  filmes  Telefone Branco  dos  anos 1930 ao horror,  em  Suspiria
(1977), de  Dario Argento e o Édipo Rei (1967), de Pier Paolo Pasolini

Um filme de episódios como Nós, as Mulheres (Siamo Donne, 1953) reflete já em meados da década de 1950 a respeito da questão do estrelato – em 1951, Luchino Visconti foi direto ao ponto em Belíssima, que discute a questão do ponto de vista das estrelas mirins. Composto por cinco curtas-metragens dirigidos por cinco diferentes cineastas a partir de quatro estrelas do momento: Alida Valli, Ingrid Bergman, Isa Miranda e Anna Magnani – Valli e Miranda foram extremamente populares no período anterior à guerra. O quadro de Alida Valli apresenta uma estrela glamorosa entediada com suas tarefas de celebridade. Convidada para uma festa de noivado, ela se entrega a fantasias sobre como sua vida poderia ter sido. Reconhecendo que não faz mais parte do mundo “do lar”, foge da festa. O estrelado é apresentado como um clichê, glamoroso, socialmente exigente e cerceador da individualidade, reiterando o conflito entre a “vida real” e o custo imposto pelo estrelato. Em Sedução da Carne (Senso, direção Luchino Visconti, 1954), Valli é Lidia Serpieri, uma nobre decadente obcecada por uma concepção operística, novelesca e romântica do amor. Landy observa como este papel evoca os muitos filmes em que a atriz atuou na década de 1930, dramas de época como Il Feroce Saladino (direção Mario Bonnard, 1937), comédias húngaras como Vida Apertada, e melodramas românticos como Assenza Ingiustificata (direção Max Neufeld, 1939), sem esquecer o melodrama patriótico do Risorgimento, Piccolo Mondo Antico (direção Mario Soldati, 1941). Com sua postura durante as filmagens, Valli constrói a reputação de “anti-diva”, sem afetação e acessível a diretores e técnicos (4).


Em  A Estratégia da Aranha   (1970),  Bernardo Bertolucci oferece
Alida Valli o papel de viúva de um herói  antifascista herói que se revela uma fraude. Ela retornaria em 1900 (1976) e La Luna (1979)

Ainda de acordo com Landy, o papel de Valli em Sedução da Carne oferece um contraste irônico, particularmente em relação a seu sofrimento e submissão em Piccolo Mondo Antico e seu empenho anticomunista em Atrás da Cortina de Ferro (Oprimidos). Ao ser rejeitada pelo amante no final do filme de Visconti, insistiu Landy, ocorre um desmascaramento de seu excesso operístico de diva. Sua imagem glamorosa é drasticamente transformada durante Sedução da Carne. Chegando suja e descabelada de uma jornada que Franz disse para ela não fazer, seu personagem é colocado em gritante contraste em relação a uma prostituta jovem, fazendo a parecer velha, abatida, feia e vingativa. A posição de Valli como estrela permitiu a Visconti minar o glamour e o espetáculo do estrelato, reduzindo-o a sordidez e degradação moral. Landy lembra que tal exposição da dissimulação através do seu modo de lidar com as estrelas e encenação é intrínseco ao estilo de trabalho de Visconti.

“A imagem cinematográfica incita a memória, o pensamento, e, ao envolver a utilização de estrelas, a outro sentido menos reducionista do passado. Nos filmes de Visconti, as estrelas são emparelhadas com outros objetos estéticos, sendo submetidas à mesma reflexão em relação a declínio e mortalidade. De Carla Calamai, Alida Valli e Anna Magnani à Burt Lancaster, Dirk Bogarde, Ingrid Thulin e Giancarlo Giannini, entre outros, estas estrelas desempenham um significante papel em inicialmente estabelecer sua beleza e atração do desejo, para então gradualmente registrar sua desintegração ou, na melhor das hipóteses, seu aprisionamento no aparato cinematográfico. Suas estrelas se tornam instrumentos para expor o caráter virtual da imagem cinematográfica e, consequentemente, para minar as expectativas clássicas em relação à beleza e ao desejo” (5)



Leia Também:

A Guerra dos Seios no Cinema Italiano
A Ideologia, a Mulher e o Cinema na Itália 
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Quando Sophia Loren Entrou na Guerra dos Seios 
O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima
Este Corpo Não Te Pertence: A Mulher Fascista 
Monica Vitti: A Trajetória de Uma Loura
Silvana Mangano e o Corpo-Paisagem
Stefania Sandrelli: Sabor de Sal?

Notas:

1. LANDY, Marcia. Stardom, Italian Style: Screen Performance and Personality in Italian Cinema. Indiana: Indiana University Press, 2008. P. 196.
2. GUNDLE, Stephen. Bellissima. Feminine Beauty and the Idea of Italy. New Haven/London: Yale University Press, 2007. Pp. 103-6.
3. GENNARI, Daniela Treveri. Post-War Italian Cinema. American Intervention, Vatican Interests. New York/London: Routledge, 2009. Pp. 124-5.
4. LANDY, M. Op. Cit., pp. 105-6, 195-6.
5. Idem, p. 197.

Sugestão de Leitura

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