Medéia

“Quando eu
escolhi essa tragédia de
barbarismo, onde vemos uma
mãe assassinar seus filhos por
causa do amor por um homem,
o que mais me fascinou foi a
falta de limites e o exagero
de seu amor” (1)
“Quando eu
escolhi essa tragédia de
barbarismo, onde vemos uma
mãe assassinar seus filhos por
causa do amor por um homem,
o que mais me fascinou foi a
falta de limites e o exagero
de seu amor” (1)
A Narrativa
Essa estória antiga nos conta a respeito de Medéia, que se vinga de Jasão matando os filhos que teve com ele, assim como sua atual esposa. Medéia incorpora um mundo arcaico e religioso. Jasão, um herói da época, ao contrário, é racional e pragmático. Tendo o sucesso como única preocupação, ele perdeu o sentido do mundo imaterial. No fundo uma estória de amor, o drama gira em torno da incompatibilidade entre duas culturas. Uma adaptação de Pasolini do texto escrito no século V a.C. por Eurípedes, o filme começa com Jasão, sua educação com pelo Centauro e sua busca pelo Velocino de ouro. Pasolini filma Medéia (Medea) em 1969.
“Dá vida à
semente e renasce com
a semente”
Medéia, depois que o sacrifício
humano foi feito e queimado
durante o ritual de fertilidade
semente e renasce com
a semente”
Medéia, depois que o sacrifício
humano foi feito e queimado
durante o ritual de fertilidade
Então passamos para o mundo de Medéia, onde acompanhamos um ritual com sacrifício humano. Seria um ritual de fertilidade, onde todos comem a carne do morto e esfregam alguns dos pedaços e o sangue em suas plantações. Com isso somos apresentados ao mundo dessa mulher, uma sacerdotisa e suas ligações com o sagrado. Veremos o choque entre o mundo dela e o de Jasão, essa mulher renuncia a seu universo em nome de Jasão e no final percebe que este homem não pretende ser nada para ela.
“Tenho um sombrio pressentimento de dor”
Medéia, quando manda
seus filhos levarem o presente
mortal para Gláucia
Medéia, quando manda
seus filhos levarem o presente
mortal para Gláucia
Medéia abandona sua posição de sacerdotisa em Cólquida (filmado na Capadocia, Turquia) para acompanhar Jasão até Corinto (filmado na Cidadela em Alepo na Síria; e na Piazza dei Miracoli, em Pisa, Itália). Ela rouba a pele sagrada do carneiro de ouro (matando seu irmão Absirto no processo), centro espiritual de sua comunidade, para ofertá-la a Jasão, cuja única intenção desde sempre foi repassar essa pele como condição para reaver seu trono. Desde o primeiro momento que ela chega à terra de Jasão, percebemos a diferença em relação ao mundo que pertencia. Quando Medéia, em função de suas conexões com o sagrado, corre assustada avisando a Jasão e seus homens que falta um centro naquele lugar, tudo que eles fazem é rir dela.
A situação, que vai se deteriorando, desmorona quando Jasão recebe a mão de Gláucia com as benções do pai dela, Creonte, o rei de Corinto. Traída pelo homem por quem abriu mão de seu mundo sagrado, Medéia mata Gláucia e os dois filhos que teve com Jasão. Ele não está interessado na vida espiritual dela, sua ligação com Medéia é puramente utilitária. Ela não passa de um meio para alcançar um fim. Trata-se de uma abordagem materialista em relação a essa união física, que não demonstra nenhuma preocupação com o modo de vida autêntico da comunidade e Medéia.
No prólogo do filme, centralizado na vida de Jasão com o Centauro, já podemos perceber a indiferença do menino. Ainda criança, Jasão já se mostra entediado (e acaba dormindo) enquanto o Centauro lhe afirma que tudo é sagrado e nada é natural. Tudo está ligado a um deus, nada é apenas natureza. Jasão não reterá nada desses ensinamentos, batendo de frente com o estilo de vida da sacerdotisa, totalmente direcionado ao sagrado e ao metafísico (2).
A Mãe do Marido
Seja para criar ou destruir, Medéia age de acordo com crenças que sustentam a vida através de conexões espirituais profundas. Mesmo o fato de ela roubar a pele do carneiro dourado não pode ser reduzido a um capricho, mas está ligado ao seu desejo de associação com o divino. Todas as suas ações (trair seu povo, assassinar Absirto, envenenar Gláucia, ou mesmo matar seus filhos) têm como objetivo salvar o sagrado.
Os Olhos de Medéia
Esses planos de perfil revelam sua natureza dupla: enquanto uma parte dela está firmemente enterrada na realidade espiritual de Cólquida e seu povo, o outro lado está aberto ao desconhecido e a fenômenos que a levarão para longe de suas origens. Pasolini também fez uso de planos gerais, imergindo Medéia no ambiente agrícola de Cólquida – como elemento central dos rituais de fertilidade ou em sua posição ligeiramente destacada da multidão. No final da estada em Cólquida, pudemos ver Médeia e sua família tão incrustada na pedra da moradia que se fundem visualmente.
Jasão nem percebe a importância dessa união física para Medéia, ela pretende se conectar com ele literalmente, fazendo dele o centro de sua existência. Ela nunca será central para ele, durante a viagem marítima os olhos de Medéia se fixam em Jasão e o estudam como a um objeto estranho. Da parte dele, nenhum olhar para ela. Ele não procura contato, nem com ela, nem com o sagrado nela. Será depois disso que, já em terra, ele e seus homens riem da preocupação com a falta de um centro naquela terra. Nem mesmo durante o sexo, quando os olhos dela estão procurando uma conexão com ele, Jasão olha para cima (em nossa direção). Apesar de ter dois filhos com Medéia, ele aceita a permissão de Creonte para se casar com Gláucia.
O Mundo físico e o Metafísico
Seguindo o ponto de vista de Medéia, a câmera acompanha o perfil daquele corpo, da cabeça aos pés. Foi o próprio Pasolini que filmou a cena, na qual a silenciosa observação de Medéia reflete a expressão de sua subjetividade espiritual, presente desde o começo do filme. Através desse ritual privado, ela estabelece o corpo de Jasão como seu centro espiritual. A emoção é tão forte que ela acorda o homem para fazer amor com ele (isto é, fazer contato com o sagrado) uma vez mais (5).
As Visões de Medéia (que não vimos)
Então ela está em sua casa em Corinto e o sol aparece para ela em forma humana. Uma duplicação acontece. Uma Medéia, da realeza, se expressa através dos versos de Eurípedes e fala de vingança, confiante e senhora de si e da realidade. A outra Medéia, ao contrário, observa, tremendo, ansiosa, infeliz, suplicante, e que não teme em exibir seu terrível medo e insegurança enquanto assiste ao que acontece (9). Medéia se torna uma só novamente e observa uma série de maravilhas, que Pasolini chamou de “ressurreição dos corpos”: uma semente floresce e torna-se uma planta, noutro momento, Medéia se metamorfoseia tornando-se um enorme olho.
Entretanto, esta não era uma semente comum, mas sangrentos membros humanos que se juntam para formar um corpo humano. Ratos saem das aberturas e se transformam em seres humanos com máscaras, a morte. O único olho de Medéia olha como um grande peixe. A carruagem do sol vem e a leva com seus dois filhos. No roteiro do filme, Pasolini escreve que o sol é ao mesmo tempo o deus da fertilidade e o da morte. Nessa visão Medéia também é uma presença passiva.
Visões
de Medéia
foi o título
provisório
foi o título
provisório
do filme
Sufocando (de amor) a Filharada
Notas:
1. Pier Paolo Pasolini. Citado em SCHWENK, Bernhart; SEMFF, Michael (eds.). P.P.P. - Pier Paolo Pasolini and Death. Ostfildern-Ruit, Germany: Hatje Cantz Verlag, 2005. Catálogo de exposição. P. 197.
2. RYAN-SCHEUTZ, Colleen. Sex, the Self, and the Sacred. Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini. Canada: University of Toronto Press, 2007. P. 71.
3. Idem, p. 68.
4. FUSINI, Nadia. Il Grande Occhio di Medea. In Laura Betti & Michle Gulinucci (eds.) Le Regole di Un’illusione (1991). Citado em RYAN-SCHEUTZ, Coleen. Op. Cit., p. 241n44.
5. RYAN-SCHEUTZ, Coleen. Op. Cit., p. 70.
6. Parcialmente preservadas, elas foram lançadas como Visioni della Medea, num dvd em torno de 40 minutos e que também trás algumas tomadas alternativas.
7. Pier Paolo Pasolini. Medea. Milano, 1970. P. 63. In SCHWENK, Bernhart; SEMFF, Michael (eds.). Op. Cit., p. 100n22.
8. SCHWENK, Bernhart; SEMFF, Michael (eds.). Op. Cit., p. 101.
9. Ver nota 7. P. 101n24.
10. RYAN-SCHEUTZ, Coleen. Op. Cit., p. 71. O grifo é meu.
11. Idem, p. 73.
12. BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di un Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001. P. 227.