Um Cineasta Italiano na Corte do Duce
Embora menos conhecida no contexto de sua obra, a assim chamada Trilogia da Guerra Fascista de Roberto Rossellini enaltece os soldados de Benito Mussolini. Cada filme aborda um ramo das forças armadas: La Nave Bianca (1941) (imagem acima), Un Pilota Ritorna (1942) (imagem abaixo) e l’Uomo dalla Croce (1943) enfocam, respectivamente, a marinha, a força aérea e o exército. Existem investigações em relação à continuidade estética e ideológica entre essa trilogia e os filmes que giram em torno da temática da guerra que Rossellini dirigiu após 1945, de Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta) em diante. De fato, os filmes de Rossellini podem ser enquadrados no debate em torno da estética realista durante a ditadura de Mussolini. É preciso ressaltar que nessa época a indústria cinematográfica italiana era patrocinada e regulada pelos interesses dos fascistas. Contudo, Ruth Ben-Ghiat afirma que apesar de pertencer à geração que o governo desejava transformar numa elite cultural, Rossellini nunca participou dos programas oficiais concebidos para formar os próximos líderes da indústria cinematográfica Fascista (1).
La Nave Bianca e
Un Pilota Ritorna são
filmes de transição entre a temática da Antiga Roma e
a nova ênfase do Fascismo
exaltando o papel das
forças armadas (2)
Rossellini renunciou à educação universitária, o que o deixou de fora dos Grupos Universitários Fascistas (Gruppi Universitari Fascisti) e ele não compareceu ao Centro Sperimentale di Cinematografia, a escola de cinema que o regime fundou em 1935. Sendo assim, Rossellini aprendeu seu ofício trabalhando como assistente de dublagem, roteirista e montador. Em 1936, participou do primeiro de dois projetos que se revelariam importantes para seu desenvolvimento enquanto cineasta realista com um fraco por temas políticos. Como assistente de direção e roteirista, primeiramente ele participa em La Fossa degli Angeli (direção Carlo Ludovico Bragaglia, 1937), um filme que misturava elementos de documentário e de ficção. Bragaglia se perguntava como atingir uma unidade de estilo, qual a melhor forma de misturar uma parte de documentário e outra ficcional. Nos anos seguintes tais questões ocupariam Rossellini e outros cineastas interessados em fundir documentário e ficção. Em 1938, Rossellini trabalha como co-diretor e co-roteirista em Luciano Serra Pilota (direção Goffredo Alessandrini). Um longa-metragem de grande orçamento, patrocinado por Vittorio Mussolini, filho do Duce, seria crucial para preparar Rossellini na ideologia e no ofício do cinema de filmes de guerra.
O Realismo e o “Cinema Nacional”
Com o sucesso de Luciano Serra Pilota, Rossellini se torna amigo de Vittorio e freqüentador do salão administrado por Edda, irmã de Vittorio, e seu marido, o Ministro do Exterior Galeazzo Ciano. A Segunda Guerra Mundial começa e a articulação entre realismo e ficção passa a ser utilizada. Ben-Ghiat afirma que ainda que não tenha surgido nenhuma escola de teoria e prática realista tenha emergido durante o tempo de Mussolini no poder (o ventennio fascista), desde a década de 20 do século passado o realismo foi considerado a base para um “cinema nacional”. Muitos advogavam então que com a ênfase na filmagem ao ar livre e a utilização de atores não profissionais, tal cinema poderia se contrapor satisfatoriamente tanto aos filmes norte-americanos (focados em torno de estrelas) quanto aos “filmes de arte” europeus. O realismo interessou aqueles que desejavam comunicar idéias políticas através dos longas-metragens. Acreditava-se que a integração de cenas retiradas de cine-jornais mostrando lugares reconhecíveis com elementos ficcionais garantiria uma ressonância nacional. Rossellini e outros desenvolveriam essa estética híbrida durante a Segunda Guerra.
Por volta de 1940, o interesse no realismo acabaria por inovar também o próprio gênero documentário. Inicialmente, Mussolini considerava que os filmes de ficção serviriam melhor a seus interesses de educação e persuasão. O Instituto LUCE, fundado por ele em 1923, celebrava cada iniciativa fascista em curtas-metragens de propaganda e cine-jornais. A importância do documentário (para as massas) em tempo de guerra era evidenciada pela corrente de influências e citações mútuas misturando narrativas e não-ficção. Os documentários de guerra alemães eram estudados por italianos, ingleses e norte-americanos. Em La Nave Bianca (imagem acima, à esquerda), que Rossellini dirigiu sob a supervisão de Francesco De Robertis, empregou um elenco marinheiros para demonstrar as operações de um navio de guerra e do navio hospital Arno, mas também introduziu um envolvimento romântico entre um marinheiro ferido e uma enfermeira. De Robertis era um fascista de carteirinha e acompanhou Mussolini em sua fase final na República de Salò; essa atitude, que não foi seguida por outros como Rossellini, se refletiria em sua carreira no pós-guerra. Seja como for, Peter Bondanella ressalta a importância do trabalho de De Robertis como de Rossellini durante o ventennio para lançar as bases do realismo na primeira década do pós-guerra (3).
No início de La Nave Bianca, descobrimos que a tela preta é o cano do canhão de um enorme navio de guerra apontado para o espectador, quando ele se move podemos ver outro navio igualmente intimidante (veja no vídeo acima). Ben-Ghiat nos lembra que aqui Rossellini está citando O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925), do soviético Sergei Eisenstein. A grande arma está mirando (simbolicamente) os inimigos da Itália, mas também a platéia, reforçando o slogan de Mussolini (segundo Ben-Ghiat, emprestado dos Bolcheviques) de que o cinema será a “arma mais forte”. Na opinião de Bondanella, o interesse dos italianos seria menos direcionado à propaganda soviética do que ao realismo socialista “dos russos”. No Centro di Cinematografia são realizadas traduções dos trabalhos de teóricos como Eisenstein, Vsevolod Pudovkin, Bela Balázs e outros, que certamente ajudaram a direcionar alguns cineastas italianos para o realismo - embora Bondanella afirme que foi o cinema francês aquele que mais influenciou o cinema italiano naquela época. Para Mariarosaria Fabris, o mito do cinema soviético no cinema italiano ainda não foi suficientemente estudado, mas admite que “o debate sobre o modelo de sociedade, mensagens e linguagens, que agitava a Rússia naqueles anos, alcançou a Itália (...)” (4). (imagem acima, à direita, Un Pilota Ritorna)
Negação da Responsabilidade
A especialização de
Rossellini em filmes de
guerra devia ser estudada,
dos 25 produzidos entre
1940-4, participou de 7
Rossellini em filmes de
guerra devia ser estudada,
dos 25 produzidos entre
1940-4, participou de 7
Em Un Pilota Ritorna, como em La Nave Bianca, o tom realista e documental gradualmente dá lugar ao melodrama. Na primeira parte, o filme anuncia o apelo do serviço de aviação, integrando cenas reais de bombardeio obtidas por LUCE, a força aérea e pela equipe de Rossellini. Enquanto o tenente italiano Gino Rossati faz sua primeira missão, o cineasta mostra as manobras dos aviões de combate italianos. No papel de Rossati o ator Massimo Girotti, que em 1943 protagonizará Obsessão (Ossessione, direção Luchino Visconti), onde seu personagem se junta com uma esposa insatisfeita para matar o marido dela, e em 1969 será um industrial nu gritando no deserto, em Teorema (direção Pier Paolo Pasolini, 1968). Os dois papéis invertem o ideal da família perfeita propagado pelo Fascismo Massimo não é o pai de Mario Girotti, o famoso Trinity do faroeste espaguete. Na segunda parte Un Pilota Ritorna, Rossati é um prisioneiro de guerra na Grécia quando se apaixona por Anna. No final, aparece como uma vítima entre vítimas, ao invés do que realmente é – alguém que enquanto piloto de bombardeiro contribuiu para a destruição que agora está a sua volta. Na opinião de Ben-Ghiat, em Un Pilota Ritorna, o repúdio e a negação da responsabilidade italiana pode de fato expressar a ambivalência do próprio Rossellini em relação ao que foi uma guerra impopular, mas o filme também apóia reivindicações de qualidades “humanitárias” e “espirituais” dos fascistas, enaltecidos por intelectuais e políticos no início do ventennio fascista. (imagem acima, l'Uomo dalla Croce).
Considerado um filme de transição na obra de Rossellini, l’Uomo dalla Croce (veja no vídeo ao final) marca a emergência de um padrão maniqueísta de pensamento (mais visível quando se mostram os inimigos da Itália) que irá se refletir também profundamente em Roma, Cidade Aberta. O filme foi rodado em Cinecittà e se inicia com imagens leves, pássaros cantando e soldados descansando na grama. A figura central agora é um capelão italiano que acaba prisioneiro dos russos, e será interrogado por um italiano sádico que abandonou seu país e o Fascismo pelo Comunismo. Essa estratégia, Ben-Ghiat ressalta, será utilizada também em Roma, Cidade Aberta: retratar os nazistas (e os russos nesse caso) e os italianos colaboracionistas como uma doença ambulante e desviantes sexuais. Como em La Nave Bianca, o final de l’Uomo dalla Croce mostra a ideologia católica do filme. Um close-up da cruz no uniforme do capelão é sobreposto por uma dedicatória ao clero italiano “que caiu na cruzada contra os ‘sem Deus’, na defesa da pátria, e para trazer a luz da verdade e da justiça mesmo à terra do inimigo bárbaro” (imagem abaixo).
A negação, pelos
italianos, de sua
própria violência
durante a guerra
também deveria
ser mais estudada
italianos, de sua
própria violência
durante a guerra
também deveria
ser mais estudada
O foco no final do filme não é no capelão, mas na horda de soldados italianos sem rosto. Curiosamente, o lançamento do filme foi adiado para junho de 1943, uma fase da guerra no front russo em que o exército italiano levou uma surra – o cinema italiano nos apresentaria ao assunto em Os Girassóis da Rússia (I Girasoli, direção Vittorio De Sica, 1970). No final de 1944, com Roma sitiada pelos nazistas, Rossellini dirigiu sua atenção para a resistência antifascista, que será o tema de Roma, Cidade Aberta e Paisà (1946). Durante este período, o cineasta também serviu como representante dos Social-Democratas no novo sindicato dos trabalhadores do cinema do Comitê de Libertação Nacional. O que sugere a importância dos temas católicos abordados por Rossellini depois de 1945. Roma, Cidade Aberta esboça uma mudança de tom nas relações católicas em relação à l’Uomo dalla Croce. Se no último caso o padre militar queria converter aqueles que não comungavam de sua crença (os soldados comunistas), agora Don Pietro é um padre aliado dos guerrilheiros antifascistas com um ponto de vista mais pluralista. Ben-Ghiat notou uma curiosa continuidade entre os dois filmes. O padre que prepara Don Pietro para ser executado pelos soldados fascistas é o mesmo homem (o não-ator Alberto Tavazzi) que atuou como capelão em l’Uomo dalla Croce. Uma coincidência irônica ou uma renúncia de Rossellini em relação aos paradigmas cristãos de prática e pensamento ligados ao Fascismo?
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Notas:
1. BEN-GHIAT, Ruth. The Fascist War Trilogy In FORGACS, David; LUTTON, Sarah; NOWELL-SMITH, Geoffrey (eds.). Roberto Rossellini, magician of the real. London: British Film Institute, 2000. Pp. 20-31.
2. RICCI, Steven. Cinema & Fascism. Italian Film and Society, 1922-1943. Berkeley: University of California Press, 2008. P. 88.
3. BONDANELLA, Peter. Italian Cinema. From Neorealism to the Present. New York/London: Continuum, 3ª ed, 2008. Pp.22-4.
4. FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano. São Paulo: Edusp, 1996. Pp. 61, 95n17.